Certa vez presenciei uma cena enquanto esperava em um banco de shopping center: uma senhora, sentada no banco atrás, com a filha, comentava sobre uma menina, acredito que pré-adolescente, que usava roupas pretas e atravessava a entrada do estabelecimento:
- olha, que coisa mais feia! Cabelo todo pintado de rosa! Hahahahahahaha... é muito feia, mesmo. “Dermilivre” pintar meu cabelo assim.
Não pude deixar de olhar para a mulher e prestar atenção na reação da filha, que devia ter dez ou doze anos de idade. Sorria também. Fiquei chateado, pois era a mãe da menina, referencial (provável) de autoridade quem estava caçoando. Pensei que daquele jeito a menina cresceria com todas as possibilidades de se tornar desrespeitosa, intolerante com o que não fosse espelho.
Foi quando ouvi a menina chamando a atenção da mãe:
- Olha, mãe! Que menina gorda mais feia! Hahahahaha...
- Eita, menina, é mesmo! Hahahahaha...
Naquela hora pensei: “que bom! Parabéns para a senhora! Já era imbecil e agora tem uma filha imbecilzinha. A senhora deve se orgulhar! Destruiu sua filha! Agora ela é tão estúpida quanto a senhora e vai viver mais para superar sua imbecilidade!”
Logo em seguida ela olhou para mim com aquele olhar “raio x”. Sabem como é um olhar desses, não sabem? Dos pés até a cabeça num movimento de globo ocular ligeiro de cima abaixo. Claro com foco no meu cabelo afro-poder-preto-estiloso-que-só eu. A mãe deu aquela cotovelada sutil como uma arrevoada de hipopótamos, a menina olhou. Acreditando que estava sendo discreta, deu uma risadinha. Eu fiquei olhando para elas. Com cara de nada, conhecida como cara de paisagem. Talvez meu olhar dissesse muito da minha irritação pois elas sorriram para mim aquele sorriso amarelo, sem graça, do tipo: “disfarça, que ele tá olhando pra cá”.
Levantei do banco e flagrei as duas gesticulando com as mãos acima da cabeça fazendo o formato do meu cabelo afro-poder-preto-estiloso-que-só eu. Não tem como não se sentir triste pela menina e irritado com a mãe. Ela, que teoricamente deveria educar a filha no caminho do respeito, incitava o escárnio e a intolerância.
Pensei, como o falecido (infelizmente) psicoterapeuta José Ângelo Gaiarsa:
"Dizem que os pais não orientam os filhos, mas quem orientou esses ignorantes? Metade dos pais brasileiros são alcoólatras crônicos, têm quantos filhos quiserem, um exemplo doméstico mortífero, horrível. A família é muito falada, elogiada e em nada cuidada". (in: http://palavrasdogaiarsa.blogspot.com.br/search/label/Fam%C3%ADlia)
Pais que não foram orientados não orientam as crias. Uso o termo crias pois é o que esses pais estão colocando no mundo: crias, seres que viverão, provavelmente, como animais um pouco mais “organizados” que um cão, um gato ou outro bicho considerado irracional.
Enquanto professor de História posso afirmar com a suposta autoridade de quem lida com crias (filhos e filhas), parideiras (mães) e mantenedores (pais): a maior parte dos problemas escolares teria solução simples com educação doméstica. Não falo do adestrar para dizer bom dia, boa tarde, boa noite, obrigado, por favor. Falo da educação para ser e estar no mundo ligando-se e ligado à coletividade.
Muitas vezes converso com estudantes sobre coisas que pais poderiam orientar. Muitas vezes, sem notar, estudantes deixam escapar um “valeu, pai”, ficam com vergonha e pedem desculpas. Eu sorrio e digo para relaxar.
Entendo que dá trabalho trabalhar (foi proposital a repetição) e gerir uma casa e educar crias (filhos). Mas, como afirma a troça carnavalesca olindense: “se não aguenta, pra que veio?”. Provavelmente alguém pode pensar que é fácil escrever isso, mas não é mole ser pai ou mãe quando não se planejou. Respondo assim: “assuma sua parte. Você transou sem preservativo. Gozou gostoso? Pronto, agora vem o retorno. E se o preservativo estourou, aí sim veio a contingência que não tira a responsabilidade sobre a cria”.
Pode soar enfadonha a repetição, mas educação e só educação pode salvar. Mesmo quando o ensino público é precário (assunto de outra postagem, em breve) o que se tem em casa é referencial importante.
Não sei se a mulher ou a filha lerão estas linhas, mas ficarei feliz se tiverem algum efeito pelo menos em quem lê-las fazendo-as saírem do status de parideira e mantenedor.
Pensar para coletividade é ter HISTÓRIA NA CABEÇA.