Já há algum tempo eu escutei de um estudante em sala de aula: por que eu tenho que estudar História? Ou a mais contundente: por que eu tenho que estudar história do Brasil? É tudo uma roubalheira só. Algum leitor deste blog, que foi ou é professor de História já ouviu tal questionamento. E se for estudante de nível médio já fez essa pergunta ao professor ou ouviu algum coleguinha fazer.
Estudar História durante um bom tempo foi um misto de decoreba de nomes e datas. Ou nomes e datas em questionários dos quais seriam retiradas as perguntas da prova. Bastava decorar e aguardar o dia da prova. E quem tinha dificuldade de decorar se dava mal. Ainda hoje encontro pais de alunos que dizem que estudar história era mais fácil na época deles...
Pois bem, pensemos fora da caixa. Tanto a nostalgia de uns quanto a indignação de outros pela História de nosso país tem uma razão de ser.
Disciplinas da área de Ciências Humanas têm um apelo emocional muito forte. Elas podem mexer com estruturas de sentimentos bastante profundas. É difícil encontrar alguém que não tenha amado uma área do conhecimento porque um professor fez com que ela enxergasse aquele aspecto da existência de uma forma diversa da qual estava acostumada. Como a maior parte das situações tem um outro lado, odiar também faz parte do pacote. Quem não detestou uma disciplina pois teve um professor medonho?
E na área de Humanas temos a tríade do mal: História, Filosofia e Sociologia. Vamos aos clichês: mermão, esse professor de História é muito doido!, Ei, meu professor de filosofia é muito viajado; professor, o senhor é terrorista, né não? E, no meu caso específico, com minha vasta cabeleira afrodescendente, já ouvi desde dentro desse cabelo tem uma bomba, doido!; ei, o senhor é chegado em Bob Marley, né não?; até uma que já virou um clássico: o senhor é comunista, ateu, fã de Bob Marley e herege, né não? Esta última vale anotar, é entendida por muitos estudantes como sinônimo de professor de História.
Assim, os professores de História são entendidos, na maior parte das escolas, como os mais perigosos. Ou os mais descolados. Ou os mais chatos. Perigosos pois posso construir um terrorista ou um revolucionário dependendo da abordagem que eu tenha de um mesmo assunto. Ou um ativista social responsável ou ainda um fascista de primeira linha. Posso fazer com as devidas condições de temperatura e pressão.
Descolado se eu curto a vibe das modernidades culturais, como alguns costumam dizer. Chato, pois posso tornar um tema tão instigante quanto o período regencial brasileiro em uma aula tão sacal que até Araújo Lima, considerado reacionário “pra dedéu”, ia achar ruim.
Pois bem. Quando estudamos História podemos escolher vários caminhos. Várias são as possibilidades de usar a Força. É o que se chama de vertente historiográfica. Ou escola histórica, ou historiografia e outros sinônimos... dependendo da vertente, o mesmo assunto pode ser tratado por olhares diferentes.
Tá, e como isso se relaciona com Chico Buarque e com as manifestações contra o aumento de passagens? Da seguinte forma: após a ditadura militar brasileira qualquer lembrança de autoritarismo ou reminiscência dele era extirpada. Uma das vertentes históricas mais utilizadas foi a marxista (que esteve presente na formação de muitos universitários antes dos anos de chumbo também). Qual é o ponto?
A análise pautada nas ideias de Marx garante um instrumental para compreensão da sociedade e dos conflitos de interesse muito bom. A questão é que a transposição desse referencial para as salas de aula acabou gerando uma simplificação: a sociedade é formada por exploradores e explorados. Existe a burguesia e o proletariado. A revolução socialista vai acabar com a desigualdade. Abaixo o capitalismo. Destruam os EUA.
Essas são algumas das palavras de ordem que já ouvi da boca de colegas de profissão. Mas ATENÇÃO! Não escrevo que eles estão errados. Eles optaram por tratar a história por essa ótica. O que acredito ser importante é lembrar o que Hilton Japiassu escreveu no livro A pedagogia da incerteza. Não posso ajudar meus estudantes a lidarem melhor com as transformações que a existência sofre se eu mesmo não me disponho a mudar. E não é uma negação da luta, da ação social, da reivindicação. Mas conheci muitas pessoas que negavam ou não viam a importância de estudar História pois não aguentaram professores que passavam várias aulas falando que tinham que mudar o mundo, fazer a revolução.
Esse uso fechado ao questionamento dessa vertente histórica apoiada nas ideias de Marx contribuiu muito (muito não é ser responsável) para que a História do Brasil fosse entendida como uma grande safadeza e com uma justificativa clássica: pois no início só vieram aqui para explorar e trouxeram ladrões, prostitutas.
Conheço muitos professores marxistas dos quais não concordo com o posicionamento em sala de aula mas que são meus amigos. Este texto não é uma crítica ao trabalho de vocês, certo? Este texto é uma tentativa de registrar como nós, professores de História, somos e podemos ser perigosos, descolados e chatos.
E O MALANDRO?
Tratar da História do Brasil é um desafio. E dos mais pesados. Mas, pensar sobre como isso pode ser feito e fazê-lo é muito bom também. Ao presenciar a discussão entre a senhora, o cobrador no ônibus e os manifestantes durante o protesto contra o aumento das passagens de ônibus me fez pensar como a ideologia coloca óculos que só garantem um jeito de ver a realidade (com todos os problemas que esse termo tem). Para a senhora e o cobrador, eram os estudantes os problemáticos.
Conversando com um amigo, ele me disse que os estudantes pediram para o Choque fazer o que fez. Entendo que ele não percebeu a estrutura maior, a superestrutura que está montada. Meu amigo, o cobrador e a senhora fazem parte do grupo ao qual pouca oportunidade e condição é garantida para refletir acerca da existência. É mais difícil querer entender a realidade quando se tem que pagar contas e sustentar uma família. Mas a indignação está lá e existe capacidade de indignar-se. Basta a parteira certa (grande Sócrates, o filósofo).
Foi quando lembrei de Chico Buarque e a música O Malandro. E do meu quinhão de professor de História e de História do Brasil. Podemos mudar o que existe? Sim. Conseguiremos rapidamente? Não. Como fazer, então? A História pode ajudar. E a História do Brasil pode muito mais. Basta que paremos de dicotomizar e passemos a problematizar.
É entender que a ação do Choque não é fruto apenas da truculência dos soldados. É fruto da truculência dos soldados mais algo que é HISTÓRICO no Brasil: a centralização. E a centralização violenta. O “debate” sobre o “projeto político” que se estabeleceria ocorre desde a época colonial. O governo geral, a corte no Rio de Janeiro a partir de 1808, o império de D. Pedro I, as guerras civis regenciais (ainda que este termo não apareça em livros didáticos), as violências contra marinheiros, camponeses, tenentes, comunistas, anarquistas e rebeldes os mais diversos são exemplos de resultados de ações centralizadoras.
A História do Brasil é a História das ações centralizadoras. Mais do que destruir visões do Brasil ou construir distorções, devemos problematizar. Por que ainda é assim? A quem serve? São perguntas importantes e tentar respondê-las pode ser o primeiro passo.
Este não é um texto prescritivo para meus colegas professores que porventura acessam o blog. Nem é um texto para doutrinar estudantes. É parte da problematização que faço de minha própria existência enquanto professor de História. Faço parte dessa mesma estrutura e me encontro várias vezes pensando como o garçom da canção de Chico.
Entender a História do Brasil é entender a ação do Batalhão de Choque e o silêncio de muitos grupos políticos.
Pode ser que não consigamos mudar tudo o que nos incomoda, mas com certeza nossas ações servirão de exemplo para outras pessoas.
Participar das passeatas ou entender os motivos delas acontecerem é um passo importante. É também participar ativamente da escrita da História, a História de todos e todas.
Eis a letra da canção de Chico. Eis o link para escutá-la.
LEIA. ESCUTE. PENSE FORA DA CAIXA.
TENHA HISTÓRIA NA CABEÇA.
O malandro/Na dureza
Senta à mesa/Do café
Bebe um gole/De cachaça
Acha graça/E dá no pé
O garçom/No prejuízo
Sem sorriso/Sem freguês
De passagem/Pela caixa
Dá uma baixa/No português
O galego/Acha estranho
Que o seu ganho/Tá um horror
Pega o lápis/Soma os canos
Passa os danos/Pro distribuidor
Mas o frete/Vê que ao todo
Há engodo/Nos papéis
E pra cima/Do alambique
Dá um trambique/De cem mil réis
O usineiro/Nessa luta
Grita(ponte que partiu)
Não é idiota/Trunca a nota
Lesa o Banco/Do Brasil
Nosso banco/Tá cotado
'Tá cotado
No mercado/Exterior
Então taxa/A cachaça
A um preço/Assutador
Mas os ianques/Com seus tanques
Têm bem mais o/Que fazer
E proíbem/Os soldados
Aliados/De beber
A cachaça/Tá parada
Rejeitada/No barril
O alambique/Tem chilique
Contra o Banco/Do Brasil
O usineiro/Faz barulho
Com orgulho/De produtor
Mas a sua/Raiva cega
Descarrega/No carregador
Este chega/Pro galego
Nega arrego/Cobra mais
A cachaça/Tá de graça
Mas o frete/Como é que faz?
O galego/Tá apertado
Pro seu lado/Não tá bom
Então deixa/Congelada
A mesada/Do garçom
O garçom vê/Um malandro
Sai gritando/Pega ladrão
E o malandro/Autuado
É julgado e condenado culpado
pela situação
0 comentários:
Postar um comentário